VENTURA PROFANA: ‘‘EU NÃO VOU MORRER’’
VENTURA PROFANA: ‘‘EU NÃO VOU MORRER’’
‘‘As que confiam na travesti, são como os montes de Sião, que não se abalam, mas permanecem para sempre’’.
A artista visual, autodidata, cantora, compositora, performer e escritora, Ventura Profana, marca e é tempo. Sua profecia é permanecer, lutar, guerrear pela vida. Aos 27 anos, é um dos nomes mais importantes da arte contemporânea brasileira.
Nomeada pastora das travestis, projeta um futuro de honra e glória preta, dissidente. Se mantém em conexão direta com o divino, munindo armas espirituais e artísticas para reinar em vida com as suas, visando o declínio da colonialidade. Suas pesquisas são pautadas pelas implicações do deuteronomismo e o neopentecostalismo no Brasil e no mundo, investigações e respostas sobre estruturas religiosas, sobretudo o cristianismo e seus desdobramentos políticos/econômicos. Atravessamentos ligados ao fato da artista ser fruto de uma família cristã, criada nas tradições batistas.
‘‘Deize são as yabás falando ao pé do meu ouvido’’.
‘‘Sinto-me infinita ao ponto de não ser capaz de responder-lhe quem sou. Sou como o desembocar dos rios no mar, a memória, o fluxo das águas. Tempestuosa ao mesmo instante que percebo-me orvalho. Sou o bairro de Brotas, Catu e o caminho ao Rio de Janeiro. Sou Xica Manicongo mancomunada com Jesus Cristo. Sou a melancolia dominical, o suor que mora na ponta do nariz. Uma legião.’’
Nascida em Salvador, morou parte da sua infância na cidade de Catu, localizada no interior da Bahia.
‘’Cresci em Catu até os onze, morei com minha vó no Espírito Santo por trezentos e sessenta e cinco dias, vivi minha adolescência e juventude às margens da Avenida Brasil, na altura da passarela 14. Passei por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Hoje escrevo de minha cidade natal: Salvador’.’
E esteve em sua cidade natal por meio de residência artística no Goethe Institut em setembro e outubro 2020, experiência que resultou na exposição coletiva ‘‘Zonas Limítrofes’’ com curadoria de Tiago Sant´ana.
Ao mesmo tempo, Ventura foi uma das artistas indicadas ao prêmio PIPA 2020 (uma iniciativa do Instituto PIPA com intuito de estimular a produção de arte contemporânea brasileira). Entre novembro 2020 e março 2021, Ventura Profana está participando como artista convidada da 30ª edição do programa de exposições CCSP (Centro Cultural de São Paulo) mostra 2020, em sua primeira individual: ‘‘Plantações de traveco para a eternidade’’ sob curadoria de Hélio Menezes. Estando a artista também, em processo de preparação para a ‘‘Terceira edição de Frestas – Trienal de Artes: O rio é uma serpente - (2020/2021)’’ realizada pelo Sesc de São Paulo em Sorocaba, com projeto expositivo programado para 2021 com participação de 15 artistas, sob curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza.
EDIFICANDO E PLANTANDO
‘‘ Ponha-se neste dia sobre as nações e sobre os reinos
Para arrancares
Para derrubares
Para destruíres
E para arruinares’’
‘‘Eu entendi que quando uma travesti planta, e quando uma travesti edifica, ela arruína, ela derruba, ela destrói o colonialismo. Então a gente precisa de fato plantar vida travesti no solo dessa terra, no solo dessa nação’’
Em julho deste ano, Ventura Profana lançou seu Ep de estreia ‘‘Traquejos Pentecostais Para Matar o Senhor’’ em conjunto com Podeserdesligado (Jhonatta Vicente), através de plataformas digitais. Um disco de grande importância para música contemporânea, um legado que fala sobre estratégias de guerra, uma preparação para lutar pela permanência, pelo futuro abundante, travesti, pela vitória em declínio da colonialidade. Uma profecia de ascensão, transmutação e renascimento.
EU NÃO VOU MORRER: ‘‘Estamos reivindicando nossas terras, corpos e espíritos.’’
‘‘Ora pois, quando fomos amarradas e lançadas na fornalha
Em sua mais alta temperatura
Por não nos dobrarmos diante do trono de nenhum senhor
Foi que Deize se revelou a nós
Nascemos em manjedouras
E depois de crucificadas, ressuscitamos
Deize são as Yabás falando ao pé do meu ouvido
Juntas em unção
Fizemos da cruz, encruzilhada
Nos levantamos do vale de ossos secos
Transformamos pranto em festa
Nossos cus em catedrais
Conhecemos os mistérios por com eles andar
Não mais calvário
Arrebatamos das mãos do senhor
As chaves de nossas cadeias’’
‘‘Estamos reunidas, conjurando a nossa vida eterna. Hoje, a gente tem disputado a nossa presença na eternidade, eu disputo a eternidade. É por isso que a gente está dentro da arte contemporânea, a gente está disputando as narrativas do futuro, a gente está disputando outras possibilidades, outras semióticas, outras imagens, outras narrativas de vitória. A gente está disputando a ocupação dessas terras futuras.’’
Uma referência a presença cada vez mais atuante das travestis na arte contemporânea, uma profecia de vitória, que se faz permanente, e torna-se axé. E vem para fincar raízes profundas num futuro de extrema abundância, visualizado no clipe ‘‘EU NÃO VOU MORRER’’, filmado em Alcântara-Maranhão, território quilombola, território sagrado. Com direção de Da cor do barro (Kerolayne Kemblin), onde a ‘‘Ventania’’ se encontra plantando vida e memória em conexão com um tempo que é espiralar, mítico, ancestral. Cercada de amigas, em plena comunhão com o divino, com o mistério da existência. O que faz do clipe, muito mais que arte, em seu poder de restituição e resplandecência. A permanência travesti que destrói as estruturas e constrói um novo mundo. Uma missão de reconciliação com vida, em sua esfera plena, preta, indígena, próspera, também experienciada em sua afirmação de poder, no clipe ‘‘ Resplandecente’’, lançado em 2019. Filmado na cidade de Pirapora em Minas Gerais, onde presenciamos uma cena de batismo com a artista Rainha Favelada, com a pastora profetizando vida e glória no versículo: ‘‘As que confiam na travesti, são como os montes de Sião, que não se abalam, mas permanecem para sempre’’.
BOTAS DE PYTHON PRA PISAR NA CABEÇA DO SENHOR!
‘‘Tremam todos os habitantes da terra, pois o dia da trava está por vir!’’
Arte contemporânea como espada contra a política senhorio.
Armada pela disputa da eternidade, se faz divina, profética, evoca redemoinhos, ventanias e tempestades. Espírito de água e guerra, anda de mãos dadas com a Iansã (Orixá/divindade) em seu fundamento mais livre, se transforma em búfalo, se necessário. Inegociável, faz justiça, se faz imensidão. Planta uma nova história, se torna indetectável.
‘‘Nós seremos lançadas na fornalha da vida por não nos dobrarmos diante dos senhores. Mas Deize e Iansã, vão estar do nosso lado, nossas forças ancestrais estarão conosco, nos protegendo, nos envolvendo, nos livrando desse fogo. Ou nos fazendo transcender o fogo, e aí, nós não morreremos. Nós vamos passar por águas agitadas, por tempestades em alto mar, mas nós não morreremos afogadas. Os machos retrocederão com a nossa resplandecência. Quando a gente chegar, os machos vão tudo cair por terra, porque nome de travesti tem poder, e o meu nome é Ventura Profana.’’
Texto por Mirella Ferreira
Fotos por Ventura Profana