Castiel Vitorino Brasileiro: o corpo como um lugar de memória

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Castiel Vitorino Brasileiro: o corpo como um lugar de memória

Castiel Vitorino Brasileiro traz sua origem no nome e na arte que produz. Nascida em Vitória, no sudeste do Brasil, a artista vive atualmente entre sua cidade-natal e São Paulo, onde concilia sua atividade artística com a pesquisa acadêmica. Em suas obras, explora as relações entre os corpos, a prática da macumba e as marcas da colonialidade. Mestranda em Psicologia, também está mergulhada, atualmente, em pesquisas sobre a diáspora Bantu, além de temas como espiritualidade e ancestralidade travesti.

 

Em 2019, foi realizada sua primeira exposição individual, O trauma é brasileiro, em sua cidadenatal. Antes, Castiel já contava com mais de 15 participações em exposições coletivas por todo o Brasil, a primeira delas em 2016. Atualmente, a artista está expondo seu trabalho na 11ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim. É a primeira vez que ela leva à Europa a sua arte, resultado de uma encruzilhada de saberes em ligação direta com seu próprio corpo.

O morro é uma fonte grande

A abordagem proposta por Castiel tem profunda ligação com sua herança cultural. Nascida e criada no Morro da Fonte Grande, na capital capixaba, ela lembra do período vivido nessa comunidade como uma “experiência estética”. Elementos para isso não faltaram:

“Nasci dentro de uma comunidade quilombola, mesmo, porque eu compreendo o Morro da Fonte Grande como um espaço quilombola (...) É onde eu fiz o Congo, onde eu fiz capoeira, é onde eu aprendi a dançar, é onde eu aprendi a ler também. Então, o que acontece comigo em relação à arte é que ela me acompanha desde o início da minha vida (...) a prática de estetizar a vida...”

Ainda na infância, Castiel fez cursos de mosaico, percepção visual, crochê, pintura... todos em projetos sociais na Fonte Grande. Desenvolveu, enfim, uma prática extensa em costura, passando a criar todas as suas roupas. Todas essas experiências, em conjunto, desaguariam no que ela é hoje.

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A arte desnuda o corpo e o espírito

Em 2015, Castiel iniciou a graduação em Psicologia. Ao longo de cinco anos de estudos, a artista passou, também, por um processo intenso de autodescoberta.

“Chegou um momento que eu comecei a transição de gênero, mesmo sem saber o que estava acontecendo - porque também não precisa saber sempre. Nessa transição, eu não conseguia falar sobre ela na Psicologia. Aí, eu comecei a fazer algumas coisas na arte.”

Ao mesmo tempo, Castiel voltou-se ao Umbanda, a religião em meio à qual foi criada. Mais uma vez, com repercussões sobre seu fazer artístico.

“A arte, ela tem vários momentos. E outro momento surge quando eu volto, traço o caminho de volta para a macumbaria. Aí, eu inicio um outro momento com a minha arte, que eu começo a produzir explicitamente focando, desejando a espiritualidade.”

Esse processo, por meio da transição e da cura, teve (e tem) um sentido mais profundo que o de autoconhecer-se, segundo Castiel:

“A espiritualidade é se autoconstruir. Eu não entendo como ela está lá na África, eu vou lá buscar, e tá lá me esperando. A minha ancestralidade, eu crio ela. Porque, quando eu começo a transição de gênero, o que acontece comigo é construir uma espiritualidade, construir uma ancestralidade.”

Essa construção só é possível para a artista, buscando respostas.

“O que eu preciso fazer nesse momento de transição na minha vida é perceber, por exemplo, quais foram as pessoas trans e travestis negras que estavam no Morro da Fonte Grande antes de mim? Quais foram as pessoas trans e travestis que estavam no terreiro em que hoje eu estou? Na minha família, quais são essas pessoas? Quais pessoas negras? Toda a minha família é negra, a família por parte de pai e mãe, negro com indígena. Então, dessas pessoas negras, quais também transicionaram? Eu sou a primeira? Eu não acredito que eu seja a primeira de nada, eu acredito que eu dou continuidade.”

 
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O tempo do gênero e o tempo da raça


As relações entre gênero e raça perpassam a produção intelectual e o fazer artístico de Castiel. Antes, no entanto, vêm as perguntas.

“Eu, uma travesti, como me insiro na história da negritude? E como a história da negritude se insere em mim? (...) Eu vou em Xica Manicongo, em Timbira, Lacraia e tantas outras pessoas negras, que também transicionaram de gênero e não deixaram de ser negras por causa disso. Muito pelo contrário, começaram a viver uma complexidade de gênero com raça que é outra.”

Para lidar com essa complexidade, ela recorre à própria espiritualidade.

“A espiritualidade, para mim, é uma forma que eu desenvolvo de sair desse regime de gênero e de raça. (...) Seja dentro do meu centro, do meu terreiro de macumba, quando eu tô incorporada, quando eu tô fazendo os cultos, os trabalhos, ou seja, na arte. É toda essa negociação, mesmo...”

 

No entanto, Castiel também encara sua própria complexidade de outra forma: por meio da produção literária. Em 2019, ela publicou, de forma independente, "Quando encontro vocês: macumbas de travestis, feitiços de bixa". Composto de textos e aquarelas, todos de sua autoria, o livro traz, segundo ela, reelaborações estéticas de experiências mediúnicas em rituais de umbanda… Para produzi-lo, ela diz ter deixado um pouco de lado as amarras acadêmicas:

“Em nenhum momento, eu fiquei pesquisando no campo da academia, em bibliografia, para dizer aquilo que eu estava dizendo. Claro que eu sou acadêmica, eu sou constituída por esses saberes acadêmicos, pela intelectualidade negra, pela intelectualidade indígena e travesti e trans, não há nenhum problema nisso, pelo contrário, é preciso cada vez mais.”

O resultado é uma escrita solta e corajosa, que mergulha em temas tratados com preconceito e desconhecimento até hoje, no Brasil. O resultado disso é sentido no dia a dia pela artista.

“As pessoas não se aproximam de mim. As pessoas não se aproximam das pessoas trans da forma como deveriam se aproximar, pelo menos. Compreendem a gente a partir de um estereótipo, e, a partir dali, criam o que é a gente, criam as tradições, criam os ritos. A gente não pode esquecer que tanto a umbanda, quanto o candomblé, o guandu, a cabula, a quimbanda, todas essas religiosidades, elas foram construídas dentro do território colonial, dentro do território amaldiçoado que é o Brasil.”

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Entrar no terreiro, estar nele

O preconceito também entra no terreiro, diz Castiel. A forma como esse preconceito tem sido enfrentado, ao longo da história, demonstra que é possível inserir e aceitar as pessoas trans e travestis. No entanto, há, ainda, muitas barreiras.

“Dentro do terreiro, há racismo. Dentro do terreiro, há transfobia, há misoginia, há homofobia, há tudo isso. Como a gente negocia a partir disso? Como a gente cria a partir disso? (...) No meu terreiro, eu uso roupas masculinas, né? Até hoje. E eu tento aprender com isso, não no sentido de naturalizar, porque para mim nada é natural, existe de fato uma construção acima disso. Então, ser impedida de utilizar roupas, ser impedida de se nomear no feminino, ser impedida. O que me resta é aprender, o que me resta é aprender com o impedimento.”

 

Os terreiros e outros espaços ligados a religiões afro-brasileiras representam um espaço de resistência cultural e religiosa, visto que sobrevivem há séculos ao preconceito em um país majoritariamente católico. Ainda assim, estariam impregnados de colonização e colonizam.

A artista deixa claro que não se trata de fechar terreiros. No entanto, defende a construção de um novo pensamento, que respeite os ensinamentos dos Orixás. Nesse sentido, as paredes do terreiro não deveriam representar o que representam, muitas vezes, hoje.

“A gente quer entender o nosso corpo como um lugar de memória.”

 
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A cura pela arte

Os trabalhos de Castiel transmitem, com frequência, reflexões acerca de sua espiritualidade, que extrapola os terreiros, mas os transporta a outros espaços, de outras formas e com motivações diversas. Exemplo disso é a instalação: Quarto de Cura, que se situa em uma encruzilhada entre arte, psicologia e curandeirismo. Nessa obra, a artista desafia os limites entre esses diferentes saberes.

“Ele (o quarto) vem de um sonho, inclusive. Eu sonhei com esse nome, que o nome seria quarto de cura. Ele surge a partir de uma perspectiva, de um desejo meu, de curar adoecimentos coloniais. (...) No quarto de cura, eu faço isso. Eu crio mandingas para os nossos adoecimentos.”

 A instalação já foi realizada três vezes, a última delas em sua exposição individual O Trauma é brasileiro. Em todas as vezes que o quarto é montado, Castiel apresenta-se como artista, psicóloga e macumbeira.

“Eu me proponho, em todas elas, a atender as pessoas, a conversar mesmo sobre as doenças psicossociais, e trazer fundamentos dos caboclos, com as plantas, com as águas bentas, como pensar esse adoecimento a partir da espiritualidade.”

Escrito por Saran Koly

Entrevista por Mirella Ferreira

Fotos por Castiel Vitorino Brasileiro

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