Helen Salomão: ‘‘Periferia sem sangue, a poesia e a não padronização dos corpos femininos”
Helen Salomão, fotógrafa e poetisa baiana, vem construindo pontes e abrindo caminhos para o protagonismo negro por meio da fotografia documental. A retratista, que atualmente vive em São Paulo, também estuda direção de fotografia e transita no meio audiovisual.
Sua fotografia traz a urgência do presente, traduzida em obras que exaltam a população negra, principalmente mulheres negras em diálogo com corpo, memória, espaço e tempo. Em seus registros, a vida pulsa pelos corpos que superam padrões e gritam por liberdade. São mulheres que assumem o protagonismo de suas histórias e de sua arte, construindo afetividades. Grande exemplo desse protagonismo é a própria Helen Salomão - que vem dando nome e sobrenome, como nos ensinou a feminista Brasileira Lélia Gonzalez - e expondo em locais como o Museu de Arte da Bahia, o Museu de Arte Moderna do Rio e o Fowler Museum da UCLA, nos Estados Unidos.
Mulheres artistas para além do conceito de arte hegemônica
Helen diz que sua mãe sempre foi artista, definindo-a como uma trancista talentosa. A influência do cotidiano, no entanto, teve enorme impacto em sua obra.
Foi a partir dessas reflexões que seu olhar despertou para a vida e para a arte que pulsava ao seu redor, fazendo-a reverberar em seus trabalhos, cujas representações do cotidiano empoderam mulheres e homens negros, inspirando-os a expressar e construir afetividades.
Exemplo muito bem retratado em um de seus projetos em conjunto com o fotógrafo Davi Reis, nomeado ‘‘Dupla Exposição’’. Nele, são construídas narrativas a partir da fotografia analógica, e que são publicadas em redes sociais, o que desconstrói totalmente os conceitos de espaço expositivo e não acessibilidade.
Outro exemplo do poder da representação na obra de Helen Salomão é a série de autorretratos ‘‘Os Dias Eram Assim". A artista define sua proposta como ‘‘periferia sem sangue, a poesia e a não padronização dos corpos femininos’’. Nos retratos, expõe potencialidades, dores, angústias, mas, para além disso, a necessidade de parar, olhar para si e aprender a amar o próprio corpo.
Estar em casa no contexto atual, acaba sendo também, uma oportunidade de olhar para si com amor. Com isso, o fazer artístico supera as visões do belo e as transcende. A imagem torna-se posição política e ferramenta de cura pela importância de colocar esse ‘‘corpo no mundo’’, como canta Luedji Luna, também fotografada pela artista.
Descoberta pela fotografia
A trajetória artística de Helen desenvolveu-se de forma natural, movida pela curiosidade. Segundo ela, deu-se a partir de descobertas profissionais que atravessaram sua vida e que a trouxeram a uma reflexão sobre o não pertencimento em certos espaços. A necessidade de conhecer a si mesma a levou à experiência artística. Helen começou seus estudos como autodidata, até ingressar na escola de arte e tecnologia Oi Kabum. Lá, passou a questionar pela sua perspectiva de mulher negra, atravessada por um recorte de periferia, o seu lugar no mundo.
"Comprei uma câmera semi-usada na busca de me aproximar da arte. Não tinha nenhuma referência e não entendia nada sobre fotografia. Comecei estudando sozinha e fui me interessando cada vez mais a cada descoberta que eu mesma fazia. Queria fazer um curso, mas não tinha dinheiro para pagar um. Até que em determinado momento, soube deste curso gratuito de arte e tecnologia para jovens da comunidade. Passei na seleção e, nesse espaço, mais que fotografa, tornei-me artista. A fotografia passou a ser o meu campo de discussão e meu artivismo."
A busca por formas de expressões artísticas ocorreu junto à tomada de consciência sobre si mesma. Helen diz que falar sobre essa descoberta é ser, muitas vezes, questionada sobre a possibilidade de uma pessoa negra se descobrir negra:
"Sou uma mulher negra de pele clara, nascida e criada dentro de comunidade. Descobri-me mulher negra a partir de vivências fora da minha 'bolha' com as quais pude entender a sutileza e o esquema estruturado do racismo."
A questão do colorismo é principalmente para a Helen, um local doloroso, um sentimento de não pertencimento, enquanto mulher negra de pele clara. Segundo ela, esse ‘‘não lugar’’ representa a certeza de não fazer parte do mundo branco, mas, muitas vezes, não ser aceita pela comunidade negra, ao ser vista pelos seus privilégios. E como resultado, ter a fala anulada ao tratar de dores e traumas.
Helen conclui: "Essa é uma das tantas maneiras de nos desarticular. Por isso, no meu trabalho, falo da importância de cada um ser protagonista de suas próprias histórias e saber seu lugar de fala."
O autorretrato como posição política
Compreender o próprio lugar de fala exige reflexão e cuidado. Uma das ferramentas escolhidas por Helen, para isso, é o autorretrato:
"O autorretrato para mim, é um processo de autocura, de me despir das minhas próprias prisões. É a busca pelo amor interior - de que Bell Hooks fala no texto ‘‘Vivendo de amor’’. É me perdoar pelos julgamentos e pela busca de uma imagem que talvez nunca exista. É entender e usufruir desse corpo no agora, refletir a imagem para além da estética. É pensar na minha trajetória. É sanar e discutir dores. É a maneira que encontrei de pôr a minha digital na história e entender, na prática, como humanizar mais ainda o meu trabalho."
A escrita também ajuda Helen nesse processo, em sintonia com a fotografia:"a escrita, para mim, é um desabafo e uma construção conjunta com minha fotografia. É mais um lugar para que a minha história não se perca no tempo."
O corpo como linguagem
No projeto "Casa, Corpo, Pele, Parede", Helen coloca um olhar sobre a beleza dos corpos dissidentes - e neles enxerga as marcas, as vivências e as subjetividades. O corpo passa a ser um território político, ancestral.
Ela diz buscar nesse projeto, naturalizar corpos femininos reais, que na maioria das vezes passam por um processo desumanização. A fotografia passa a ser, então, resistência. Uma negação do corpo público, disponível a julgamentos alheios e com sua estima diretamente afetada, e sua afirmação enquanto templo sagrado e território político:
"É a busca de um olhar respeitoso e honesto para entender que o corpo é linguagem, é alicerce, é político, é reverberação do interno, é ancestralidade, é território, é templo, é tempo, é comunicação, é acolhimento, é geração, é repleto de vivências e de histórias únicas que podem gerar representatividade para outras mulheres e reflexões para toda sociedade."
O trabalho de Helen mostra a força artística e o poder político que têm as mulheres negras ao ressignificar o conceito de belo na fotografia contemporânea. Sua câmera torna-se uma aliada na luta antirracista e uma forma de estabelecer a auto-imagem como mecanismo de combate ao epistemicídio.
Segundo Helen, o belo vai além de uma imagem "bonita". Para a artista, o belo é a construção do real. E o que é o real?
"O real, na minha concepção, é a nossa verdade e a verdade do que a gente retrata. O genocídio, o epistemicídio e a necropolítica são feridas abertas em nossos corpos e em nossas almas. A gente morre antes e depois do tiro. Achille Mbembe diz: Quando se nega a humanidade do outro, qualquer violência torna-se possível de agressões até a morte. E esse é um problema do qual não somos os causadores. Esse é um problema do branco!"
Os lados da ponte
Helen diz construir seu trabalho para a população negra em sua diversidade. Pela arte, defende ser possível mostrar o seu potencial, sua condição de detentores de conhecimentos e intelectualidade, de beleza e poder. Segundo ela, isso é essencial "para que a gente se identifique no outro, veja possibilidades e gere memória a longo prazo".
A fotografia pode ser uma expansão da ancestralidade, unindo quem veio antes às futuras gerações. O registro de corpos negros, então, transcende o conceito de empoderamento:
"Sou grata aos que vieram antes de mim, principalmente as mulheres negras por abrirem os caminhos. Sou grata por poder acessar a fotografia, mesmo sabendo que a mesma não foi pensada para mim. Quero construir narrativas positivas e ser ponte. Eu construo para o agora e para as futuras gerações. Porque para saber onde você vai, tem que saber de onde você vem!’’
Segundo Helen, é importante ter a digital na história - e uma digital real, contada e protagonizada por cada um:
"Eu preciso que a minha tataraneta saiba quem eu fui, qual caminho trilhei, que ela possa usar o meu sobrenome e ter acesso a lugares que eu não tenha tido.”
Helen também busca saber quem é a cada retrato, a cada poema, como mostram estes versos que fazem parte da série ‘‘ Os dias eram assim’’:
Eu Clandestina, insana, hostil, dose de cachaça, amor mandacaru, vencida.
Eu Clandestina, sangro em beco sem saída, flor coagulada, despedaçada, vezes, quase nunca chora.
Eu Clandestina, terço de uma das metades, pow, pow, pow, tiros, mágoas apodrecidas, empretecidas, podres feridas, mulher invadida, prato sujo na pia, no horário de meio dia, puta que pariu 7 caminhos.
Eu clandestina, envelhecida, perdi a serventia depois de abortar relacionamentos vazios.
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Por Mirella Ferreira
Fotos por Helen Salomão