Jup do Bairro: Cura, Transgressão e Corpo sem juízo

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Para a artista, a vontade de escrever veio como forma de materialização dos seus pensamentos, uma necessidade de auto afirmação. Principalmente para ajudá-la a entender as mudanças ligadas ao seu corpo que dialogavam com questões referentes a pretitude, autoestima e performance de gênero.

Artista multimídia, brasileira, independente, autodidata, nascida no capão redondo, região sudoeste de São Paulo, começou a compor aos treze anos de idade, sem pretensão de ser artista.

Iniciou sua carreira experienciando influências que passaram entre o punk  e o anarquismo, fazendo zines a partir da sua escrita, que posteriormente ajudaram a artista a compor e a decompor essas letras e transformá-las em música.

Corpo e performance de gênero

Aos 13 anos, passando por processos como o luto pela perda do pai, e por questões tão difíceis numa época de puberdade onde as mudanças corpóreas são tão latentes, o seu entendimento de corpo era que ela ainda não tinha noção de negritude e de performance de gênero, tudo voltava como culpa e sentimento de feiura.

Segundo a artista, sentia ter nascido num corpo errado, pautada pela falta de informação na época. Sendo sua criação influenciada pela vertente judaico-cristã, acabava interpretando a situação como uma forma de punição. O que posteriormente fez com que suas composições viessem atravessadas por uma pesquisa de corpo, pretitude, e empoderamento.

Primeiramente escritas de forma poética, incentivadas por um grupo de amigos punks anarquistas, sendo também uma referência do seu pai na adolescência, personalidade de grande importância na vida da Jup. Segundo a artista, mesmo tímida e lida como estranha na adolescência, ainda assim, afirmava a sua personalidade. Usava roupas do seu irmão, da sua mãe, do seu pai, se considerava uma pessoa  fora da curva. Foi quando no ensino médio, aliada a um grupo criativo de amigos, foi apresentada ao fanzine, despertando sua escrita, e ao longo da sua trajetória, transmutou suas poesias em músicas.

Trajetoria

Jup já trabalhou em lan house, no comércio, em quadra de tênis. Como artista, performou na cena artística noturna de São Paulo, se apresentou em conjunto com a produtora BadSista (parceria que dura até hoje em seu disco) durante alguns anos, saiu em turnê com álbum ‘‘Pajubá’’ em conjunto com a Cantora Linn da Quebrada, com grande repercussão dentro e fora do Brasil. Parceria que agora continua na tv onde apresentam o programa ‘‘ TransMissão’’, no Canal Brasil. No talk show, as cantoras abordam temas como sexualidade, gênero e raça ao entrevistar personalidades.

Corpo sem juízo : Um futuro que grita

Aos 27 anos, Jup do Bairro lança o seu EP de estréia: ‘‘Corpo sem juízo’’. Que reúne sua história de vida, e transmuta suas dores em potência e cura.

O EP foi lançado em plataformas digitais em junho 2020. Sendo hoje, um marco na arte contemporânea brasileira, um apontamento para o futuro. Um futuro que grita e reivindica e luta pela vida e seu espaço no mundo, com toda força intelectual, genial, ancestral do seu povo.

A presença do corpo gordo, preto, travesti, periférico, que morre, nasce, renasce e transmuta suas dores. Um processo de cura que parte de dentro pra fora, a partir de um viés biográfico, mas não só. Parte de uma intimidade e de uma história, corpo, memória, um dedo na ferida, um divisor de águas na música popular brasileira.

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Existe um novo movimento, uma voz que se faz múltipla, que a gente pode se identificar, e que mostra o real recorte entre gênero, raça e classe. A consciência política como forma de reivindicação de poder um apontamento para um futuro de honra e glória preta travesti.

Transgressão

Aprendemos com Transgressão, faixa que inicia o disco, a buscar a nossa liberdade a partir do momento que enfrentamos as nossas dores e a solidão que é a mudança em que vivemos a partir das nossas particularidades.

Uma mudança íntima e que percorre o nosso corpo e mente, a solidão de um corpo que foge dos padrões da cisgeneridade branco cêntrica, atravessado por suas adversidades, mas que ainda assim deseja voar.

O que pode um corpo sem juízo

Traz justamente a questão: ‘‘O que pode o seu corpo?’’. Quando aprendemos que não existe o corpo certo, apenas o nosso corpo. Como diz a artista na letra: 

‘‘O que pode um corpo sem juízo?

Quando saber que um corpo abjeto se torna um corpo objeto e vice-versa?

Não somos definidos pela natureza assim que nascemos,

mas pela cultura que criamos e somos criados.

Sexualidade e gênero são campos abertos

de nossas personalidades, e preenchemos

conforme absorvemos elementos do mundo ao redor.

Nos tornamos mulheres ou homens, não nascemos nada,

talvez nem humanos nascemos.

Sob a cultura, a ação do tempo, do espaço, história

geografia, psicologia, antropologia, nos tornamos algo.

Homens, mulheres, transgêneros, cisgêneros, heterossexuais

homossexuais, bissexuais, e o que mais quisermos,

pudermos ou nos dispusermos a ser.

O que pode o seu corpo?’'

All You Need Is Love

Sentimos em All you need is love, com participação vocal de Linn da Quebrada e Rico Dalasam, uma energia mais sensual. Mas se você ouvir com atenção, entende toda discussão que existe alí sobre afetividade preta, com um recorte de vivência que parte da travestilidade. Quando nós, pessoas pretas, a partir das nossas individualidades, temos tanto amor para dar, mas que não sabemos o que é isso. Não tivemos a oportunidade de amar e ser amades, de ter o nosso final feliz tão comum para a branquitude. Eis ali a indagação: cadê o amor? Será que vou compreender toda a grandeza quando ele chegar? Se eu nunca tive essa reciprocidade, se eu ainda estou aprendendo a me amar?

O Corre

No Corre, adentramos um lugar de intimidade, uma espécie de juízo final, um olhar para trajetória num flow de hip hop new school, quando se ri para não chorar diante das violências, um luto cedo,

A maturidade que se antecipa a muitas crianças e adolescentes negras por uma questão de sobrevivência. Nos falta tempo, sempre temos que estar sufocando nossas dores para seguir em frente, para trabalhar, para sobreviver, e precisamos começar a viver.

Quando o racismo nos tira desde cedo a possibilidade de se olhar com amor, quando achamos que nossa aparência é errada, que o nosso corpo é errado, e acabamos nos conformando com uma vida sem afetividade que parte de uma violência mais profunda do que a falta de afetividade dos outros.

Pelo Amor de Deize

 Daí chegamos num ponto muito delicado para a população dissidente, refletida  em ‘‘Pelo amor de Deize’’ com participação da funkeira Deize Tigrona, que é  a saúde. Principalmente a saúde mental, que é tão negada a pessoas pretas sem acesso.


Sendo a mulher preta cis, trans, travesti condicionada a ser uma fortaleza, a aguentar tudo, a nunca pensar que pode adoecer. Como pessoas pretas que vivem num recorte de uma realidade de escassez, param pra cuidar da sua mente, corpo e espírito? Sendo depressão e ansiedade, as doenças do século, como chega o amparo a essas mulheres e homens pretos que nunca podem parar? 

Luta Por Mim

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Em seguida, nos deparamos com a realidade de ‘‘Luta por mim’’, uma faixa que finaliza o álbum visual com um clipe extremamente forte e importante, e que conta com a participação do rapper Mulambo. Onde vozes de mães pretas que perderam seus filhos para o genocídio em ações policiais são ecoadas. E a mãe da Jup do Bairro, participa ao lado dela, simbolizando esse laço de amor entre as mães pretas e o medo que todas sofrem da perda, um clamor por uma mudança de estrutura de uma sociedade racista, misógina, transfóbica, travestifóbica, que mata.

E na atualidade, num recorte de pandemia, onde a condição do preto e pobre diante do desemprego em massa é morrer de fome ou de covid, onde o encarceramento e a política que impera é o epistemicídio e a necropolítica, pessoas pretas naturalizam a  não projeção de um futuro, porque temem não viver muito. Num país, Brasil que mais mata pessoas pretas, principalmente trans e travestis, Luta por mim se torna um hino, um clamor, onde apesar da dor, lutamos e nutrimos a esperança de um futuro em que a gente possa sorrir, se amar entre nós, e viver.

Um grito de luta, resistência e denúncia

Faixa que pauta a existência num Corpo sem juízo, sujeito a violências. Um grito de luta, resistência e denúncia, que encerra o ep, e que foi o primeiro single lançado antes do disco. Apenas na primeiro versão, ganha uma duração maior, sendo introduzida por um poema da escritora Conceição Evaristo, narrado por ela. Tratando justamente da trans/travestifobia, e desse lugar de dor e revolta das mães ao perderem suas filhas de forma violenta e criminosa, por apenas serem elas mesmas. Nas duas versões, ouvimos uma fala sobre trejeitos de Matheusa Passarelli, jovem artista que foi assassinada de forma brutal em 2018 na zona norte do Rio de Janeiro.


O Ep Corpo sem Juízo foi um trabalho realizado por meio de um financiamento coletivo, ao lado de Felipa Damasco (direção artística), BadSista (direção musical), Pininga (produção),Thiago Felix (produção executiva).

Ouça Corpo sem Juízo Spotify Deezer Apple Music Tidal 

Por Mirella Ferreira

Photos, courtesy Jup do Bairro

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